quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O vinculo genético da filiação pelo DNA sua aplicação nos tribunais. –III

3. A Questão de fundo

O resultado da prova da tipagem em DNA, na investigação de vínculo genético, tem valor probante absoluto e inquestionável? Mesmo que a euforia de muitos tenha transformado as técnicas de investigação da paternidade e da maternidade pelo perfil do DNA numa prova incontestável, ou que se propale uma cifra cada vez mais elevada de segurança na comprovação dos resultados desses exames, é imperioso, por razão de princípios científicos, que eles possam sempre ser analisados, principalmente quando se vai tomar uma decisão tão grave. A recomendação mais prudente tem sido que os Tribunais acreditem com reserva no resultado do polimorfismo do DNA em questões de vinculação genética de filiação, pelo fato de não se ter ainda uma convicção segura de seus recursos metodológicos.

Qualquer que seja a avaliação mais exagerada de um ou outro analista, a prova em DNA, como é conhecida, não está ainda cientificamente firmada e aceita como de valor probante irrefutável, restando, por isso, à sua justa aplicação, a necessidade de consolidar a credibilidade dos laboratórios e a contribuição de uma técnica padronizada.

Assim, é aconselhável não esquecer que os resultados dos laboratórios e dos serviços encarregados das provas em DNA devem ser sempre avaliados com muito rigor. Esse controle de qualidade tem de ser periodicamente exigido, para que não se venha a acreditar em todo e qualquer resultado de uma prova tão delicada, principalmente levando em conta a pouca experiência nacional neste setor e a precariedade dos serviços que, infortunadamente, nos leva a conjeturar sua vulnerabilidade.

Basta notar o número elevado de exames discordantes em casos dessa ordem, mesmo quando feitos por laboratórios os mais qualificados. Temos certeza de que a principal causa de erros em exames da vinculação genética da paternidade tem por motivos as dificuldades de controlar a técnica. Outros mais seriam as falsas identificações dos examinados, a troca de amostras, o uso de marcadores genéticos inadequados ou insuficientes, os produtos com prazos vencidos e as falhas na leitura, na interpretação e na transcrição dos resultados, levando tais equívocos a uma exclusão ou a uma inclusão indevida.

Não se deve esquecer de que a prova em DNA, pelo fato de ser aclamada pelos mais entusiastas, não pode confundir os que lidam com o processo judicial no momento da valorização dos resultados, principalmente quando se sabe da rapidez com que se opera sua metodologia. Podemos até admitir que o polimorfismo do DNA seja sem dúvida, de muita valia e, por isso, uma prova muito importante no campo da identificação.

Mas isso não quer dizer que a coincidência de um padrão de uma "tira", encontrada no material biológico de um indivíduo, seja um fato inquestionável na vinculação dele com outra pessoa. É preciso também saber se os analistas desse método estão administrando com cuidado o resultado da prova. Enquanto as técnicas atuais não tiverem caráter de certeza absoluta, ou seja, cem por cento de veracidade, elas continuarão a ser um meio de exclusão e não de identificação. Ou seja: a exclusão é categórica e a inclusão probabilística. A expressão "paternidade praticamente provada" não nos dá uma convicção segura para uma tomada de posição tão grave, passível de sérias conseqüências.

Outro fato que não pode deixar de ser salientado é o da pressão de certas empresas interessadas nas vendas dos "kits", as quais não se cansam de exaltar a excelência dessa técnica como proposta infalíveis e precisamente exata. Isso vem criando, entre muitos, a falsa expectativa de alcance quase infinito dessas provas.

É necessário que, por enquanto, não se venha usar o resultado da prova do DNA de forma açodada, mas com o devido cuidado que merece tudo aquilo que é atual e inusitado, e que as provas tradicionais não sejam de todo excluídas pelo simples fato de serem de prática mais antiga, principalmente quando estas provas podem excluir a paternidade de forma categórica, como por exemplo, os sistemas: ABO, Rh, HLA, etc., afastando assim a necessidade da utilização de técnicas tão sofisticadas como as de DNA.

Vivemos em nosso país ainda um momento experimental no que concerne aos exames do DNA. Poucos são os serviços que contam com recursos e experiência mais apurados. O que se tem visto malgrado um ou outro esforço, é a amostra do material ser enviada a laboratórios estrangeiros ou aos nossos centros mais desenvolvidos. Assim, o que se observa é o endosso de um resultado recebido à distância e a verdade depender da correta identificação do material e da idoneidade que possa merecer aquela técnica. E o pior: o perito que recebe tal resultado não tem como contestar, pois dispõe em suas mãos apenas da transcrição de um exame, sem qualquer tipo de informação que possa ele questionar.

Aqui não se está colocando em dúvida a idoneidade do profissional que realizou o exame. O que se discute é a oportunidade que o perito relator do laudo conclusivo não tem de discutir ou recusar um resultado que pode ser duvidoso, por um erro acidental ou involuntário, por uma troca de material, por transcrição indevida ou pela dificuldade de controlar a técnica.

Mesmo que se afirme ser a metodologia empregada menos sensível ao erro na inclusão da paternidade, é preciso ter muito cuidado quanto aos marcadores genéticos usados. Não é raro que numa investigação de paternidade os locos utilizados sejam insuficientemente discriminatórios para consignar uma exclusão, induzindo desse modo a se firmar uma falsa inclusão. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando o pai biológico é parente muito próximo do alegado pai. É claro que, quanto menor for o número de locos analisados, menor é a probabilidade da inclusão da paternidade.

Por estas e outras razões, a Sociedade Internacional de Hemogenética Forense recomenda o exame em dois laboratórios diferentes ou conferir com dois tipos de exames genéticos diferentes. Ainda assim, é de bom alvitre que esses laudos sejam acompanhados de fotografias das fichas de suporte, sobre o qual, por eletroforese foi realizada a distribuição dos fragmentos de DNA, a fim de possibilitar que outro analista confira o diagnóstico. E que se disponha de estocagem de DNA para possível contraprova em outro laboratório.

Desde algum tempo atrás, insistimos na tese de que mesmo sendo o perfil ou tipagem do DNA um método de grandes expectativas futuras no campo da hemogenética médico legal, em questões de interesse criminal ou cível, os seus resultados nos dias que correm, principalmente nas localidades onde a experiência dessas técnicas é incipiente, ainda merecem uma credibilidade com reservas. Mesmo tendo tal metodologia os aplausos incansáveis de seus defensores e os encantos que a mídia propaga, alguns daqueles resultados contribuíram, mesmo sem má fé, para transformar a sentença numa tragédia, fazendo de um inocente, culpado; ou atribuindo-Ihe um filho que não é seu.

Hoje, os técnicos mais prudentes não se cansam de afirmar que é muito importante a utilização das sondas multilocais (MLP), pela possibilidade de trazer à lide subsídios mais completos e mais convincentes a cada situação analisada. Para muitos, e nos colocamos entre eles, constitui uma temeridade sua omissão, na confirmação da prova. O uso dos sistemas unilocais deve ter sua indicação mais apropriada às questões criminais, quando a quantidade de material coletado é irrisória.

Em casos de investigação da paternidade ou da maternidade, onde se necessita não apenas de identificação, mas estabelecer a vinculação genética com outras pessoas, sua utilização é temerária face às muitas diversidades genéticas da população nos loci cromossomiais em questão.

Em nosso país, além de não existir nenhum trabalho mais detalhado sobre o assunto, deve-se considerar que a população é miscigenada de forma contínua e dinâmica, e que tem uma composição étnica muito complexa, tornando difícil sua equiparação com os resultados e as observações de outros povos.

Por outro lado, a literatura mundial especializada nesta matéria não se furta de alertar para a possibilidade de identificações incorretas ou duvidosas, concorrendo para resultados desastrosos, ainda que não tão freqüentes, mas que não se pode dizer que eles inexistem. Não convence a afirmação de que os resultados ambíguos ou atípicos sejam numa proporção insignificante. O certo é que eles existem, qualquer que seja a incidência admitida, e por isso deve-se considerar que, mesmo como fato isolado, alguém pode ser vítima de tal equívoco.

Outro ponto a salientar é que alguns laboratórios brasileiros passaram a desenvolver suas próprias técnicas de diagnóstico, não só para fugir das patentes devidas ao inventor do método, mas também como manobra ousada de simplificar e baratear o exame.

Além do mais, sente-se que há uma motivação em se criar um conceito de "prova absoluta". Isso tem levado muitos cientistas dessa área do conhecimento a rever a metodologia utilizada, sem, com isso, negar a contribuição que o seu bom uso pode trazer desde que se analisem com a devida cautela os resultados encontrados. É claro que essa batalha não será fácil. Basta levar em conta o número assustador de interesses comerciais que existe em torno dessa tecnologia, aduzida como de resultados irrepreensíveis e irrefutáveis.

Não foi por outra razão que o Conselho Nacional de Pesquisas da Academia Americana de Ciências, já em 1992, chamava a atenção, num criterioso relatório, sobre a importância do DNA na investigação do vínculo genético de filiação, recomendando um padrão para a execução dos testes e o aperfeiçoamento de seus métodos.

Entre outros aspectos, dizia que as partes envolvidas devem concordar quanto ao exame; a metodologia de coleta e a análise das amostras devem ser avaliadas em cada caso; a defesa tem o direito de acesso a todos os dados e registros laboratoriais decorrentes dos exames; e os laboratórios privados não podem ocultar informações sobre os resultados obtidos e métodos empregados, alegando segredo industrial.

O interessante é que, depois disso, os Tribunais americanos passaram a considerar os testes de DNA como elemento probatório adicional e não como prova definitiva, inclusive permitindo o contraditório. É preciso os analistas de esses resultados entenderem que, mesmo sendo o alvo da proposta a identificação de características genéticas de um individuo ou de seu grupo familiar, há probabilidade de enganos, e que isso pode se traduzir em prejuízos irreparáveis. Qualquer que seja o tipo de ação judicial, o que interessa ao julgador é a serenidade na sua decisão, a partir de provas concretas e sem probabilidades de equívocos, e lembrando que diante da dúvida, o réu deve ser beneficiado.

Por outro lado, não se pode esquecer que essas provas do DNA dependem de técnicas muito requintadas e complexas, as quais obrigam o especialista a treinamentos constantes e posturas cautelosas. Entre nós, por exemplo, não existe nenhum organismo público ou privado que exerça fiscalização constante como controle de qualidade, e por isso não se tem como padronizar métodos e técnicas, nem muito menos como avaliar as condições operacionais dos laboratórios e a capacidade de seus técnicos.

Se não houver tal cuidado, haverá muito em breve uma proliferação irresponsável e nociva de laboratórios de baixo padrão, de cujos resultados muitos malefícios vão surgir. Não tem sido raro encontrar laboratórios com reagentes imprestáveis, produtos com prazos vencidos, equipamentos com defeito, placas de gelatina desnaturadas, evidências de descuido na coleta de amostras e comprovados erros na organização dos arquivos e na transcrição dos laudos, fatos esses que vêm sendo advertidos há muito tempo.

E mais, aquilo que tanto preocupa: cada laboratório "inventando" sua própria metodologia ou "criando" padrões de coincidências de bandas. Isso nos permite pensar que peritos que trabalham em serviços diferentes podem discordar dessas coincidências.

Não podemos perder de vista ainda que, em muitas de nossas localidades, há uma predominância muito acentuada de casamentos consangüíneos e, tal fato, inexoravelmente, repercutirá numa margem de erro maior. A única forma de se vencer essas dificuldades será com a utilização de um método conhecido por "ceiling frequency" (freqüência teto), onde será considerado o limite máximo de ocorrências de um alelo, qualquer que seja a origem étnica de uma pessoa. Para que isso funcione, é necessário que os alelos sejam independentes entre si, dentro de cada loco e entre os vários locos.

Por fim, a questão: qual a chance de que apenas o indivíduo investigado seja a fonte do DNA transmitido ao suposto filho? Para responder a isso já se criou um "índice de paternidade", que aponta a probabilidade de qualquer indivíduo ser o genitor e a probabilidade de apenas o examinado seja. Assim, por exemplo, se esse índice for de um para 2.000, diz-se que somente um indivíduo em 2.001 pessoas poderia ser o pai do filho questionado.

Em João Pessoa, cuja população é de 600 mil habitantes, ocorreria uma probabilidade de 300 indivíduos serem o pai. Os defensores da técnica do perfil do DNA admitem que esses números chegam a uma probabilidade de um em 1 milhão, ou seja, de 99,9999% de certeza. No entanto, para que isso ocorresse, seria necessário que o teste tivesse uma sensibilidade de 99,9999%, o que nos parece impossível.

Qual seria, afinal, a probabilidade de um indivíduo ser acusado improcedentemente de uma paternidade quando seu perfil apresentar-se coincidente com o de um suposto filho? Pode-se afirmar que a probabilidade de incidência numa cidade como João Pessoa, por exemplo, é de 1 para 3, se não se levar em conta a influência dos sucessivos casamentos consangüíneos na
comunidade.