Flávia Nascimento
Ao acessar o Blog de Marcos Guterman ( O Estado de São Paulo), li pela primeira vez um artigo que fato tocava alguns graves problemas da sociedade brasileira revelados por esse horrível fait divers. A análise de Guterman acertava em cheio: sim, havia traço de fascismo no comportamento da turba ensandecida que durante toda semana do julgamento este agrupada diante do Fórum de Santana para acompanhar os trabalhos dos jurados.
O local do julgamento deveria ter sido isolado e os agrupamentos ali, proibidos. Por que não? Lembremos que, quando uma estrela qualquer da pop music vem ao Brasil, as forças da ordem se prontificam a fazer um cordão de isolamento para que o artista se desloque confortavelmente.
Ora, o júri popular é, no mínimo, controvertido. Parece legítimo perguntar se não deveria ser abolido. A defesa desse tipo de tribunal de júri me parece pura demagogia. Se estou certa, ele é herança da revolução burguesa e é claro que teve sentido naquele momento em que a burguesia ascendente derrubava o Antigo Regime. Hoje, contudo, é obsoleto e não está à altura de uma Justiça que se queira equilibrada, isenta, "científica" (respaldada por perícia) e que se pretenda serena (não emotiva). Basta pensar nos aspectos altamente técnicos de julgamentos desse tipo para se convencer de que nem sempre os cidadãos comuns estão de posse das ferramentas indispensáveis para opinar.
Segundo o desembargador Edison Brandão, a magistratura brasileira está dividida em relação à eficácia do júri popular e, no meio dos juristas, estão em curso atualmente várias discussões sobre essa prática (muitos são contra o júri popular, de acordo com o desembargador).
Segundo o desembargador Edison Brandão, a magistratura brasileira está dividida em relação à eficácia do júri popular e, no meio dos juristas, estão em curso atualmente várias discussões sobre essa prática (muitos são contra o júri popular, de acordo com o desembargador).
O julgamento do casal Nardoni teria sido o momento adequado para que tais discussões fossem levado à sociedade brasileira, pois são de seu interesse. Em vez de contribuir para publiazar esse debate ( utilizo aqui esse verbo em seu sentido primeiro, que nos vem do Iluminismo) a grade mídia tanto impressa quanto a eletrônica preferiu escolher a dedo os experts entrevistados, dando a palavra apenas àqueles que aplaudem incondicionalmente a prática do júri popular.
Vejo no "caso Isabella" uma evocação da obra-prima de Fritz Lang: M., o vampiro de Dusseldorf (1931). O filme do mestre germânico, considerado por muitos como uma metáfora da ascensão do nazismo, foi baseado num fait divers célebre na Alemanha, ocorrido no final da década de 20 do século passado, quando um sádico aterrorizou aquela cidade com assassinatos em série de mocinhas, diante de uma polícia impotente.
A comparação não vem do enredo em si, que nada tem a ver com o crime de São Paulo, mas há algo de M no espetáculo assombroso propiciado pelos populares irados que , plenos de religiosidade ( cartazes e camisetas invocando justiça divina), atiram pedras em camburões, urraram pela condenação dos réus um deles chegando agredir fisicamente a Dr. Podval defensor do casal julgado (ele levou um soco na barriga em pleno fórum!), violaram o espaço privado dos familiares de um dos réus (pichações insultando nos muros da casa de seus pais) e finalmente, comemoram alegremente a leitura da sentença com rojões (um dos tios da menina assassinada declarou ter gostado daqueles festejos que para ele lembravam “dia de jogo de futebol”...)
Também penso em Brecht, que teria sem dúvida visto nessas preocupantes manifestações sinais de mau agouro para o futuro da sociedade brasileira.
Não tenho meios para me pronunciar sobre a inocência do casal condenado nem tampouco sobre a sua culpabilidade ( não teria porque fazê-lo afinal não conheço o processo e nem sequer sou jurista. Mas como cidadã brasileira , clamo pelo direito que esse casal teria tido e continua tendo, como qualquer um de nós que porventura venha um dia ocupar justa ou injustamente, o lugar de um réu a um julgamento realizado em condições de total respeito às leis brasileira. Não creio que tais leis tenham sido respeitadas a risca.
Doutora em Letras e Ciências Humanas pela Université de Paris X Naterre, é professora de Teoria Literária na UNESP.
Tirado do Jornal Estado De São Paulo - 08/04/2010