segunda-feira, 8 de março de 2010

Dra. Isabel Kugler Mendes: Caso Guaratuba



Nenhuma dúvida sobre a inocência dos acusados

“Tive a oportunidade de descer até Guaratuba e conhecer o local do “pretenso ritual satânico”. Aí, se alguma dúvida existia, quanto á inocência de todos, essa desapareceu.” Dra. Isabel Kugler Mendes, atual Secretária da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Ordem dos Advogados do Paraná

Entrevista com a Dra. Isabel Kugler Mendes, atual Secretária da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Ordem dos Advogados do Paraná.

Qual a sua opinião sobre o caso de Guaratuba?
Dra. Isabel Kugler Mendes - O caso de Guaratuba, sem dúvida nenhuma, foi um dos casos de maior repercussão dentro do Judiciário Brasileiro, e porque não dizer da imprensa. Ele ultrapassou nossas fronteiras e foi lançado internacionalmente, se diz que a notícia correu em mais de 50 países, e houve o acompanhamento da mídia nacional até o final.

Tomei conhecimento dos fatos através da imprensa e passados dois meses e pouco, fui procurada por membros da família Abbage na qualidade de presidente de um órgão de defesa dos Direitos da Mulher, o Conselho Municipal da Condição Feminina de Curitiba. Recebemos a denúncia de que Celina e Beatriz Abagge teriam sido torturadas. E aí, não importando se culpadas ou inocentes, decidiu-se buscar a verdade sobre as torturas.

Porque a tortura é um crime hediondo que, de forma nenhuma, pode qualquer pessoa a ela ser submetida. É um preceito Constitucional que há que ser respeitado. Inicialmente tomamos conhecimento do processo e foi com surpresa que constatamos que, desde o início o mesmo estava cheio de falhas. No inquérito policial os erros visíveis e primários.

Examinando o processo - na época tinha 5 volumes e acredito que hoje são quase 80, levantamos as ilegalidade, falhas, erros e omissão das autoridades e elaboramos um primeiro dossiê mostrando tudo isso e o encaminhamos às autoridades e imprensa. Trabalho que contou com o apoio das advogadas e psicólogas que então prestavam serviço no Conselho.

Numa segunda etapa, num trabalho isolado, fui conhecer as pessoas envolvidas, inicialmente as mulheres. E qual não foi minha surpresa quando, decorrido já seis meses da prisão delas, constatei que ainda apresentavam inúmeros sinais da violência, da tortura a que foram submetidas. Beatriz Abbage apresentava, nos dedos das mãos, inúmeros sinais de queimaduras que, aliás, até hoje ela ainda carrega muitos desses sinais. Também apresentava cicatriz de cortes na testa, na fronte. Sinais esses, segunda ela, produzidos por fivelas de cintas dos policiais torturadores.

E ainda, surpresa maior foi quando ela contou em detalhes, que tinha sido estuprada, pelo menos, por dois policiais. Como havia desmaiado não sabe se outros a violentaram também. D. Celina também relatou as torturas sofridas, que foram muitas e cruéis. Considerando que, como consta do processo, desde o primeiro momento em que essas duas mulheres se viram frente às autoridades judiciais - juiz e promotor - elas relataram as torturas que tinham sofrido como o estupro; considerando que os sinais da violência eram visíveis, fiquei pasma ao ver que, em nenhum momento foi tomada qualquer medida.

Inclusive a justiça omitiu que Beatriz Abbage denunciava o estupro, simplesmente registrando “ela diz que sofreu atos libidinosos”. Por que? Para que não precisassem abrir inquérito, como a lei obriga e porque o rumo da investigação seria outro: confissão mediante tortura.

Para entrevistar os homens foi uma dificuldade imensa. Só consegui quando me coloquei, por curto período, como auxiliar da defesa - era uma defensora dativa, Dra. Stela. Com os homens, não foi menor a surpresa porque, embora decorridos dez meses da prisão, todos apresentavam sinais visíveis das torturas sofridas para confessarem. E continuavam sendo torturado porque privados do direito sagrado à higiene pessoal, por ordem da juíza de Guaratuba.

Eles tinham realmente uma aparência bruxos: unhas enormes, cabelos e barbas compridas e, pela falta de sol, pele de um branco esverdeado. Existem fotos daquela época que mostram que não há exagero neste relato. Entre os sinais das torturas sofridas constatamos: costelas quebradas, marcas de queimaduras no corpo, edemas, etc. Com o relato de todos os sete implicados e de vária testemunhas dos atos de violência praticados pelos PMs contra os mesmos, com cópia de documentos dos autos, um segundo dossiê foi elaborado e encaminhado a imprensa e às autoridades competentes - dos três poderes – mas, como aconteceu com o primeiro dossiê, nenhuma medida foi tomada. As autoridades optaram pela omissão. Tortura e verdade são assuntos que incomodam a todos.

No decorrer dos anos – creio que as mulheres ficaram oito anos presas - continuei acompanhando, visitando, monitorando, vendo as condições e lutando pelos direitos humanos daquelas pessoas. Que fique bem claro que, eu ou o Conselho da Condição Feminina, nunca defendemos essas pessoas pelo crime que estavam sendo acusadas. Outros advogados fizeram essa defesa.

Defendemos sim, os direitos humanos, a que todos nós cidadãos brasileiros temos direito. Essas pessoas não poderiam ter sido torturados para confessarem um crime que não cometeram.Um crime que até hoje permanece escondido pelas sombras do medo, da covardia, da indiferença de muitos. Nossa Constituição é clara ao dispor que ninguém será submetido à tortura, tratamento degradante, cruel e desumano, e essas pessoas o foram. Mas, é a regra, os inocentes “confessam” sob tortura, os culpados suportam porque sabem que serão libertados.

Na seqüência, tive a oportunidade de descer até Guaratuba e conhecer o local do “pretenso ritual satânico”. Aí, se alguma dúvida existia, quanto á inocência de todos, essa desapareceu. Quando lá estive a fábrica ainda funcionava com 25 funcionários, na épo0ca que aconteceu o fato eram 54 funcionários. Vendo o local – uma sala de cerca de seis metros quadrados cheia de móveis - qualquer pessoa reconheceria ser ali totalmente impossível de ocorrer qualquer coisa parecida com um ritual, ou mesmo uma reunião com mais de 3 ou 4 pessoas. Jamais uma criança poderia ter ficado ali presa, confinada por mais de 30 horas, como denunciado.

Uma sala totalmente aberta, com os empregados entrando e saindo a todo o momento, pegando ferramentas para regular as máquinas, para bater ponto. Além disso, o terreno – imenso - é cercado de casas e termina na baía, por onde entravam os barcos que transportavam madeira para a fábrica de caxetas. Ali vi barcos de vários tamanhos. Se alguém fizesse um ritual e procurasse esconder um corpo, era só ter adentrado a baía com um dos barcos e largado o corpo no mar, no mangue (onde seria comidos pelos siris) e esse nunca seria encontrado.

Agora, pense bem: levar um corpo a uma distância de mais de 5 quilômetros do local do pretenso ritual, colocando a chave da casa do menino desaparecido, chinelo e objetos pessoais ao lado do corpo encontrado, é um flagrante ato de se tornar conhecido o que não é! É evidente a intenção de fabricar provas para um fim desejado: incriminar inocentes.

Finalizando eu diria que – foi sempre minha opinião- quem tem que dar explicações é o acusador: o senhor Diógenes Caetano, tio do menino Evandro..Inimigo político do prefeito Aldo Abagge, alijado da sociedade tradicional de Guaratuba, freqüentada pela família Abagge e não pela sua.Vale lembrar que Guaratuba, fora da temporada, é uma pequena cidade. Durante todo o processo o acusador, Diógenes Caetano, manipulou o povo simples do município para manifestações públicas. Pelo que sei, jamais foi ele investigado

Outros fatores contribuíram para essa tragédia que se abateu sobre a família Abagge e a de tantas outras pessoas. Porque a família do pequeno Evandro é também vítima. Outro: a injunção política do momento. O prefeito Aldo Abagge, dentro da Associação de Prefeitos do Litoral, não comungava do pensamento do então governador. O que pode explicar porque não houve a boa vontade por parte do governo de investigar e esclarecer os fatos. Outros fatores importantes: a Polícia Civil - Grupo Águia – realizou farta investigação, examinou as denúncias do senhor Diógenes Caetano quanto ao ritual e nada foi comprovado.

Mas ele conseguiu fazer chegar até o então Secretário Favetti, que, diziam, estava para ser deposto diante do clamor público pelo desaparecimento de 14 crianças. Possivelmente viu o Secretário Favetti, na denuncia, alguma coisa que poderia ter repercussão e evitar sua saída. Evitou ,e a repercussão extrapolou tudo o que as autoridades imaginavam. Os ingredientes muito fortes, suficiente para incendiar qualquer coisa: CRIANÇA. RELIGIÃO, FAMÍLIA ( tradicional) e POLÍTICA ( prefeito). Rápido o fogo alastrou-se e não deu mais para segurar: a mentira prevaleceu.

Não houve mais possibilidade de retorno, e chegou ao ponto que chegou. As confissões obtidas pela PM tinham que ser mantidas em pé. E, graças a Deus, algumas dessas infelizes pessoas, foram absolvidas. Como dona Celina e Beatriz, os jurados as absolveram por 6 votos a 1 pela comprovação que o corpo encontrado não era o de uma criança de 7 anos, mas sim de uma criança de 10 a 11 anos. Depois outros dois acusados foram absolvidos, mas três dos rapazes, que não tinham condições financeiras para contratar advogados, acabaram sendo condenados. Não se sabe o motivo, mas tem um ainda preso: Vicente de Paula.

O que pode ser dito para que no futuro haja justiça e casos como este não se repitam?
Dra. Isabel Kugler Mendes - Entendo que a responsabilidade da Polícia Civil é muito grande na investigação e na elaboração de um inquérito. Ela é a polícia judiciária e não a PM, a quem cabe, no caso, a responsabilidade das torturas para obter as confissões. Hoje estamos vivendo um caso - por coincidência ocorrida no litoral - que é o caso do Morro do Boi. .Dois acusados: quem é realmente o culpado? As provas vão dizer, acredito. Daí a ser o inquérito policial essencial para elucidação do crime. Se o inquérito é mal, feito fica difícil para o Judiciário e o acumulo de processos, não raro, o impede de ir a fundo para evitar injustiças, como do Caso Guaratuba.

E ainda, o que se lamenta,que o ódio, a raiva, a inconseqüência das pessoas – no caso de Diógenes Caetano – provoquem tragédias familiares como essa. Destroem reputações. Prejudicam e fragilizam a sociedade e a própria Justiça. Atos como o deste caso, destroem e abalam estruturas familiares: a família Abagge em seu todo – uma família respeitada, de tradição sólida - foi profundamente abalada e continua até hoje sofrendo os efeitos dessa tragédia. Muitas vidas foram perdidas: Dr Aldo Abagge morreu em decorrência de um câncer no estômago de tanto sofrer. O pai de D. Celina, chorou até morrer, durante onze meses, a ponto das lágrimas cobrirem seu rosto de feridas. Faleceu o pai do Oswaldo Marceneiro e outros tantos, também de sofrimento e dor. Muitas pessoas sofreram, e ainda sofrem, como a família do mártir Evandro Caetano, as conseqüências desse triste e trágico caso.

Quer dizer mais alguma coisa para encerrar?
Dra. Isabel Kugler Mendes - Quero pedir a Deus que a verdade total, nesse caso, apareça – limpa e transparente - que possa a Justiça ser feita para todos, que a verdade sempre esteja à frente, que a mentira e o mal sejam derrotados. Que os responsáveis pela Justiça tenham consciência da importância de suas decisões para uma sociedade justa e humana. E como disse o poeta :

“Que o perdão seja sagrado
Que a fé seja infinita
Que o homem seja livre
Que a justiça sobreviva.”

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