Luiz Flávio Gomes
Teoricamente (aliás, constitucionalmente) a atividade judicial está programada para ser objetiva e independente. Mesmo quando se trata de um julgamento popular (esse será o caso do casal Nardoni, que será submetido ao veredicto de sete jurados leigos), espera-se a máxima isenção possível, inclusive frente à opinião pública (que é formada pela mídia).
Apesar da existência de várias garantias (vinculadas com a independência interna e externa dos juízes), é certo (como afirmam os sociólogos) que nenhuma decisão judicial é totalmente "objetiva" e "independente". Os processos reais (incluindo-se a influência exercida pela opinião pública, que é criada pela mídia) revelam que a atividade judicial (o ato de julgar)é extremamente complexo, sobretudo nas sociedades democráticas atuais, que são sociedades de opinião pública ( cf . Fermín Bouza Álvarez, La influencia de los medios em la formación de la opinión pública , Justicia y medios de comunicación, Madrid: CGPJ, 2007, p. 37 e ss.).
Em todos os "casos midiáticos" (caso Nardoni, por exemplo) é praticamente impossível a inexistência de "juízos paralelos" (desencadeados pela mídia). Ora em favor do réu, ora em favor da vítima: o inevitável é a eclosão desse tipo de "controle não regulamentado" da atividade judicial.
O cuidado que todos os juízes devem ter consiste em saber que nem sempre a voz do povo é a mais justa. Essa história de "Vox populi, vox Dei", no Direito penal (e na Política criminal), é muito perigosa. Em razão da carga emocional que carrega, em matéria de castigo, muitas vezes, nada mais injusta, desequilibrada e insensata que a voz do povo.
A voz do povo serve para impressionar o legislador (e gerar mais reformas legislativas), serve para a mídia vender seus "produtos" (ou seja: aumentar seu faturamento), serve para reforçar o imaginário popular de que ele tem voz e vez (e o poder de comando), mas nem sempre é boa conselheira (ou companheira ideal) para a tomada de decisões razoáveis no âmbito da política criminal (nem tampouco para a solução judicial de um conflito).
Quando a empatia da população se alia a um familiar midiático (pai, mãe, irmão etc. da vítima), que sabe protagonizar e catalisar a ira e a sensação de insegurança da população, tudo se transforma em nitroglicerina pura nas mãos da mídia.
A sociedade (opinião pública) só se tranquiliza quando há a aniquilação do delinquente (prisão perpétua ou morte, é o que a satisfaz) e as "necessárias" reformas legislativas.
A vingança popular, catalizada pelos meios de comunicação, sobretudo quando encontra um familiar midiático que assume um "bom" protagonismo social e político, tem sido, nos últimos anos, um dos (mais relevantes) guias da política criminal de muitos países.
A comunicação de massas, sendo um processo unilateral (há um emissor ativo e um telespectador passivo, chamado de homo videns ), sabe fazer uso da incitação subliminar, da banalização da violência, da transformação de um fato superficial em acontecimento mundial. A mídia cumpre um papel não só de mediação como, sobretudo, de conformação da realidade (Berger e Luckmann), isto é, de "conformação ideológica da realidade". Entrega o "produto" da maneira que quiser, fazendo uso e abuso das imagens (mídia iconográfica), que são recebidas sem nenhum senso crítico por um telespectador atrofiado culturalmente, sem nenhuma capacidade de abstração e de crítica.
Nas modernas sociedades democráticas governa-se por meio de pesquisas (assim como pela pressão popular). A mobilização da opinião pública é fundamental. Quando essa opinião pública tem empatia com uma determinada vítima (branca, olhos azuis, indefesa etc.), que foi atacada por um determinado criminoso (nada simpático: pobre, de cor escura, sem olhos azuis, sem posses, sem status, sem diploma etc.), tem-se a combinação perfeita (que se completa explosivamente quando também se encontra um familiar midiático). Tudo isso combinado, claro que vamos ter (por força da pressão midiática) mudanças legislativas, apoios do Executivo, eficiência da polícia, atenção especial do Ministério Público e, muitas vezes, a cumplicidade (vingativa) até mesmo do juiz.
Não existe "produto" midiático mais rentável que a dramatização da dor humana gerada por uma perda perversa e devidamente explorada, de forma a catalisar a aflição das pessoas e suas iras. Isso ganha uma rápida solidariedade popular, todos passando a fazer um discurso único: mais leis, mais prisões, mais castigos para os sádicos que destroem a vida de inocentes e indefesos.
As vítimas (ou seus familiares), a população e a mídia, hoje, constituem o motor que mais impulsiona o legislador (e, muitas vezes, também os juízes). É, talvez, a corrente punitivista mais eficiente em termos de mudanças legislativas, que tendem a aceitar o clamor público por penas mais longas, cárceres mais aviltantes, eliminação das progressões de regime, cumprimento integral da pena, nada de reinserção nem permissões penitenciárias, saídas de ressocialização etc.
A justiça, quando deixada sob o comando exclusivo do povo, fica totalmente cega e condena até quem seria seu máximo defensor (Jesus Cristo)! Tudo em nome da justiça, ou seja, quando a emoção fala mais alto que a razão, tudo quanto satisfaz a ira da massa ou a amargura dos familiares ou a falta de segurança coletiva passa a ser "válido" e "justo". Até mesmo a ética do jornalista sucumbe: o fundamental é "vender o produto" mórbido, consumido exaustivamente pela população.
Quais são os fatores mais recorrentes na formação da opinião pública? A cor, o status, o nível de escolaridade e a feiúra (ou beleza) do réu; de outro lado, a fragilidade, a cor da Pelé e dos olhos da vítima. Quanto mais frágil a vítima (criança indefesa, por exemplo), mais empatia ela conquista da opinião pública. Outro fator fundamental na atualidade, como enfatizamos: a existência de um familiar da vítima que tenha boa presença midiática (que fale em justiça, segurança, que critique os juízes, a morosidade do judiciário, que peça penas duras, endurecimento do sistema penal etc.).
O caso Nardoni (tendo em conta todos os fatores enumerados) é extremamente particular: se de um lado há uma vítima fragilizada (uma criança), de cor branca, que foi jogada do sexto andar de um prédio, de outro, os acusados (casal Nardoni) ostentam boa aparência, possuem nível superior, são de famílias bem assentadas, classe média, falam bem (contam com boa capacidade de verbalização) etc.
O casal nega a autoria do delito; contra eles existem (pelo que divulgou a mídia) somente indícios. Se de um lado a mãe natural da vítima vem cumprindo um "bom" papel midiático (pedindo condenação, justiça etc.), de outro, é certo que em nenhum momento o casal Nardoni foi abandonado pelos seus familiares.
Definitivamente, não estamos diante de um acusado negro ou mulato, jovem, pobre, sem titulação nenhuma, sem profissão. Fosse essa a circunstância, a opinião pública já teria por unanimidade dado seu veredicto: cadeia, prisão perpétua, pena de morte, morte lenta dentro dos presídios brasileiros etc.
Mas não é o caso. O "affair" Nardoni permaneceu quase um mês na mídia (logo após a morte da criança). Isso é inusitado (sobretudo num mundo tão fugaz regido, em suas notícias, pela velocidade da luz). É com grande expectativa, dessa forma, que estamos aguardando esse julgamento, onde tudo pode ocorrer (condenação ou absolvição). Recorde-se: no caso Suzane Richthofen, onde havia confissão, ela foi condenada por quatro votos a três (ou seja: quase foi absolvida).
No caso Nardoni não existe confissão. Existem indícios de autoria (que são suficientes para levar o delito a julgamento). Agora, seriam esses indícios suficientes para a condenação? Qual será o veredito dos jurados? Qual será o nível de unanimidade ou de conflitividade da opinião pública? Como vai se comportar a mídia doravante, até o dia do julgamento, que pode ocorrer em junho ou julho deste ano?
Extraído de: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
Teoricamente (aliás, constitucionalmente) a atividade judicial está programada para ser objetiva e independente. Mesmo quando se trata de um julgamento popular (esse será o caso do casal Nardoni, que será submetido ao veredicto de sete jurados leigos), espera-se a máxima isenção possível, inclusive frente à opinião pública (que é formada pela mídia).
Apesar da existência de várias garantias (vinculadas com a independência interna e externa dos juízes), é certo (como afirmam os sociólogos) que nenhuma decisão judicial é totalmente "objetiva" e "independente". Os processos reais (incluindo-se a influência exercida pela opinião pública, que é criada pela mídia) revelam que a atividade judicial (o ato de julgar)é extremamente complexo, sobretudo nas sociedades democráticas atuais, que são sociedades de opinião pública ( cf . Fermín Bouza Álvarez, La influencia de los medios em la formación de la opinión pública , Justicia y medios de comunicación, Madrid: CGPJ, 2007, p. 37 e ss.).
Em todos os "casos midiáticos" (caso Nardoni, por exemplo) é praticamente impossível a inexistência de "juízos paralelos" (desencadeados pela mídia). Ora em favor do réu, ora em favor da vítima: o inevitável é a eclosão desse tipo de "controle não regulamentado" da atividade judicial.
O cuidado que todos os juízes devem ter consiste em saber que nem sempre a voz do povo é a mais justa. Essa história de "Vox populi, vox Dei", no Direito penal (e na Política criminal), é muito perigosa. Em razão da carga emocional que carrega, em matéria de castigo, muitas vezes, nada mais injusta, desequilibrada e insensata que a voz do povo.
A voz do povo serve para impressionar o legislador (e gerar mais reformas legislativas), serve para a mídia vender seus "produtos" (ou seja: aumentar seu faturamento), serve para reforçar o imaginário popular de que ele tem voz e vez (e o poder de comando), mas nem sempre é boa conselheira (ou companheira ideal) para a tomada de decisões razoáveis no âmbito da política criminal (nem tampouco para a solução judicial de um conflito).
Quando a empatia da população se alia a um familiar midiático (pai, mãe, irmão etc. da vítima), que sabe protagonizar e catalisar a ira e a sensação de insegurança da população, tudo se transforma em nitroglicerina pura nas mãos da mídia.
A sociedade (opinião pública) só se tranquiliza quando há a aniquilação do delinquente (prisão perpétua ou morte, é o que a satisfaz) e as "necessárias" reformas legislativas.
A vingança popular, catalizada pelos meios de comunicação, sobretudo quando encontra um familiar midiático que assume um "bom" protagonismo social e político, tem sido, nos últimos anos, um dos (mais relevantes) guias da política criminal de muitos países.
A comunicação de massas, sendo um processo unilateral (há um emissor ativo e um telespectador passivo, chamado de homo videns ), sabe fazer uso da incitação subliminar, da banalização da violência, da transformação de um fato superficial em acontecimento mundial. A mídia cumpre um papel não só de mediação como, sobretudo, de conformação da realidade (Berger e Luckmann), isto é, de "conformação ideológica da realidade". Entrega o "produto" da maneira que quiser, fazendo uso e abuso das imagens (mídia iconográfica), que são recebidas sem nenhum senso crítico por um telespectador atrofiado culturalmente, sem nenhuma capacidade de abstração e de crítica.
Nas modernas sociedades democráticas governa-se por meio de pesquisas (assim como pela pressão popular). A mobilização da opinião pública é fundamental. Quando essa opinião pública tem empatia com uma determinada vítima (branca, olhos azuis, indefesa etc.), que foi atacada por um determinado criminoso (nada simpático: pobre, de cor escura, sem olhos azuis, sem posses, sem status, sem diploma etc.), tem-se a combinação perfeita (que se completa explosivamente quando também se encontra um familiar midiático). Tudo isso combinado, claro que vamos ter (por força da pressão midiática) mudanças legislativas, apoios do Executivo, eficiência da polícia, atenção especial do Ministério Público e, muitas vezes, a cumplicidade (vingativa) até mesmo do juiz.
Não existe "produto" midiático mais rentável que a dramatização da dor humana gerada por uma perda perversa e devidamente explorada, de forma a catalisar a aflição das pessoas e suas iras. Isso ganha uma rápida solidariedade popular, todos passando a fazer um discurso único: mais leis, mais prisões, mais castigos para os sádicos que destroem a vida de inocentes e indefesos.
As vítimas (ou seus familiares), a população e a mídia, hoje, constituem o motor que mais impulsiona o legislador (e, muitas vezes, também os juízes). É, talvez, a corrente punitivista mais eficiente em termos de mudanças legislativas, que tendem a aceitar o clamor público por penas mais longas, cárceres mais aviltantes, eliminação das progressões de regime, cumprimento integral da pena, nada de reinserção nem permissões penitenciárias, saídas de ressocialização etc.
A justiça, quando deixada sob o comando exclusivo do povo, fica totalmente cega e condena até quem seria seu máximo defensor (Jesus Cristo)! Tudo em nome da justiça, ou seja, quando a emoção fala mais alto que a razão, tudo quanto satisfaz a ira da massa ou a amargura dos familiares ou a falta de segurança coletiva passa a ser "válido" e "justo". Até mesmo a ética do jornalista sucumbe: o fundamental é "vender o produto" mórbido, consumido exaustivamente pela população.
Quais são os fatores mais recorrentes na formação da opinião pública? A cor, o status, o nível de escolaridade e a feiúra (ou beleza) do réu; de outro lado, a fragilidade, a cor da Pelé e dos olhos da vítima. Quanto mais frágil a vítima (criança indefesa, por exemplo), mais empatia ela conquista da opinião pública. Outro fator fundamental na atualidade, como enfatizamos: a existência de um familiar da vítima que tenha boa presença midiática (que fale em justiça, segurança, que critique os juízes, a morosidade do judiciário, que peça penas duras, endurecimento do sistema penal etc.).
O caso Nardoni (tendo em conta todos os fatores enumerados) é extremamente particular: se de um lado há uma vítima fragilizada (uma criança), de cor branca, que foi jogada do sexto andar de um prédio, de outro, os acusados (casal Nardoni) ostentam boa aparência, possuem nível superior, são de famílias bem assentadas, classe média, falam bem (contam com boa capacidade de verbalização) etc.
O casal nega a autoria do delito; contra eles existem (pelo que divulgou a mídia) somente indícios. Se de um lado a mãe natural da vítima vem cumprindo um "bom" papel midiático (pedindo condenação, justiça etc.), de outro, é certo que em nenhum momento o casal Nardoni foi abandonado pelos seus familiares.
Definitivamente, não estamos diante de um acusado negro ou mulato, jovem, pobre, sem titulação nenhuma, sem profissão. Fosse essa a circunstância, a opinião pública já teria por unanimidade dado seu veredicto: cadeia, prisão perpétua, pena de morte, morte lenta dentro dos presídios brasileiros etc.
Mas não é o caso. O "affair" Nardoni permaneceu quase um mês na mídia (logo após a morte da criança). Isso é inusitado (sobretudo num mundo tão fugaz regido, em suas notícias, pela velocidade da luz). É com grande expectativa, dessa forma, que estamos aguardando esse julgamento, onde tudo pode ocorrer (condenação ou absolvição). Recorde-se: no caso Suzane Richthofen, onde havia confissão, ela foi condenada por quatro votos a três (ou seja: quase foi absolvida).
No caso Nardoni não existe confissão. Existem indícios de autoria (que são suficientes para levar o delito a julgamento). Agora, seriam esses indícios suficientes para a condenação? Qual será o veredito dos jurados? Qual será o nível de unanimidade ou de conflitividade da opinião pública? Como vai se comportar a mídia doravante, até o dia do julgamento, que pode ocorrer em junho ou julho deste ano?
Extraído de: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes