Pedro Estevam Serrano
O rumoroso caso da morte da menina Isabella Nardoni, que morreu aos cinco anos após sofrer uma queda do sexto andar do apartamento em que morava, em abril de 2008, volta a ganhar espaço na mídia por conta da proximidade do início do julgamento do pai e da madrasta da menina. Ambos são acusados de atirarem Isabella pela janela e negam tal imputação.
Quero apartar-me do debate penal e criminalístico do caso, conduta que considero a mais adequada para um simples estudante do Direito Constitucional e Administrativo. Mas como espraio minha atenção e interesse pelas águas da formação do homem enquanto indivíduo, das transformações sociais, das razões históricas do mundo contemporâneo e das teorias pós-modernas sobre o comportamento humano, peço sua licença, neste texto, para me aventurar pelos caminhos da observação crítica do fenômeno dos julgamentos de casos especiais, no âmbito da sociologia do direito, como este que foi mencionado.
A reflexão que proponho é sobre o contexto no qual o julgamento se realizará, muito mais próximo da racionalidade da comunicação do que da racionalidade jurídica, como seria desejado que acontecesse. Explico.
Como o caso é de grande repercussão na sociedade, capaz de atrair a atenção dos mais diversos indivíduos e com intensa atenção dedicada pela mídia, a tramitação do inquérito e, depois, do processo, em todos seus nuances e detalhes, transformam o caso num espetáculo, no sentido da expressão de Guy Debord.
A repercussão midiática de casos jurídicos que apelem, por sua natureza, à emoção pública, que causam compaixão ou indignação, é fenômeno global, próprio da sociedade contemporânea. O problema maior é que tal fato, inerente a uma sociedade comunicativa democrática, gera complexidades e problemas que devem ser submetidos ao debate, para que surjam soluções.
Em verdade, o noticiário sobre o caso faz com que o mesmo receba do Estado uma atenção especial, que implica desigualdade com o tratamento oferecido a casos de menor apelo público. A completa, célere e competente perícia técnica que o caso mereceu nem sempre ocorre com as mesmas qualidades em casos sem repercussão.
A dedicação intensa dos diversos agentes públicos e dos profissionais privados ao cumprimento de seu papel nem sempre é a mesma nos casos não rumorosos.
Outros exemplos são os escândalos públicos envolvendo corrupção, prisão de pessoas de bom nível social e conflitos entre celebridades, que acabam por caracterizar-se como um conjunto de casos especiais. Constituem, assim, um conjunto próprio, que obtém da máquina estatal investigadora e jurisdicional um tratamento diverso dos demais no que tange à celeridade e eficiência procedimental, e mesmo reconhecimento de direitos fundamentais —como no caso do abuso do uso de algemas—, ou, por outro lado, mais rigor —como nos casos de prisões preventivas por conta do “clamor público” do processo.
Mais que isso. Tais casos são inevitavelmente influenciados pelo “julgamento público” da sociedade, a partir das versões trazidas nos principais órgãos de comunicação, nem sempre precisas ou verídicas e nunca formuladas consoante técnicas adequadas de contraditório, defesa etc. A provação do acusado pela exposição pública muitas vezes supera o da condenação, funcionando tal situação quase como uma ordália contemporânea.
Niklas Luhmann, em sua teoria dos sistemas, identifica uma pluralidade de subsistemas comunicativos no interior do grande sistema social, cada qual operando por uma racionalidade binária própria e autônoma. Subsistemas fechados sintaticamente, o que lhes prove autonomia, mas abertos semântica e pragmaticamente, o faz surgir a ocorrência de uma racionalidade transversal, no sentido de Wolfgang Welsh, pela influência de sentido inter-sistêmica. Luhmann trata esta conexão semântica concentrada e duradoura entre subsistemas pelo conceito de acoplamento estrutural.
O Direito é um desses subsistemas. A Comunicação Social e midiática também o são. O problema ocorre quando as relações inter-sistêmicas entre Direito e Comunicação Social se dão de forma a que, no âmbito dos tribunais e dos órgãos de investigação, a racionalidade própria do Direito, do lícito-ilícito, é substituída pela racionalidade própria da mídia e da Comunicação Social.
Luhmann chama de “corrupção sistêmica” essas situações em que a racionalidade de um subsistema social é substituída indevidamente pela de outro. As “corrupções sistêmicas”, ou corrupções contingentes que ocorrem em casos específicos, conflitam com os valores do Estado Democrático de Direito, numa sociedade complexa e plural como a contemporânea. Se a racionalidade própria do Direito é suprimida por outra, o Estado de Direito, em sua dimensão de concretização, vai sucumbindo com ela.
A luta corajosa dos agentes públicos e profissionais da advocacia privada envolvidos num processo de caráter midiático como este do casal Nardoni é trabalharem em comum, mesmo que isso se dê em lados diversos do processo, para que a racionalidade própria do Direito se imponha, em favor não apenas dos envolvidos no caso, mas de toda a sociedade, do regime democrático e do Estado de Direito
18/03/2010
http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas_ver.php?idConteudo=63649
O rumoroso caso da morte da menina Isabella Nardoni, que morreu aos cinco anos após sofrer uma queda do sexto andar do apartamento em que morava, em abril de 2008, volta a ganhar espaço na mídia por conta da proximidade do início do julgamento do pai e da madrasta da menina. Ambos são acusados de atirarem Isabella pela janela e negam tal imputação.
Quero apartar-me do debate penal e criminalístico do caso, conduta que considero a mais adequada para um simples estudante do Direito Constitucional e Administrativo. Mas como espraio minha atenção e interesse pelas águas da formação do homem enquanto indivíduo, das transformações sociais, das razões históricas do mundo contemporâneo e das teorias pós-modernas sobre o comportamento humano, peço sua licença, neste texto, para me aventurar pelos caminhos da observação crítica do fenômeno dos julgamentos de casos especiais, no âmbito da sociologia do direito, como este que foi mencionado.
A reflexão que proponho é sobre o contexto no qual o julgamento se realizará, muito mais próximo da racionalidade da comunicação do que da racionalidade jurídica, como seria desejado que acontecesse. Explico.
Como o caso é de grande repercussão na sociedade, capaz de atrair a atenção dos mais diversos indivíduos e com intensa atenção dedicada pela mídia, a tramitação do inquérito e, depois, do processo, em todos seus nuances e detalhes, transformam o caso num espetáculo, no sentido da expressão de Guy Debord.
A repercussão midiática de casos jurídicos que apelem, por sua natureza, à emoção pública, que causam compaixão ou indignação, é fenômeno global, próprio da sociedade contemporânea. O problema maior é que tal fato, inerente a uma sociedade comunicativa democrática, gera complexidades e problemas que devem ser submetidos ao debate, para que surjam soluções.
Em verdade, o noticiário sobre o caso faz com que o mesmo receba do Estado uma atenção especial, que implica desigualdade com o tratamento oferecido a casos de menor apelo público. A completa, célere e competente perícia técnica que o caso mereceu nem sempre ocorre com as mesmas qualidades em casos sem repercussão.
A dedicação intensa dos diversos agentes públicos e dos profissionais privados ao cumprimento de seu papel nem sempre é a mesma nos casos não rumorosos.
Outros exemplos são os escândalos públicos envolvendo corrupção, prisão de pessoas de bom nível social e conflitos entre celebridades, que acabam por caracterizar-se como um conjunto de casos especiais. Constituem, assim, um conjunto próprio, que obtém da máquina estatal investigadora e jurisdicional um tratamento diverso dos demais no que tange à celeridade e eficiência procedimental, e mesmo reconhecimento de direitos fundamentais —como no caso do abuso do uso de algemas—, ou, por outro lado, mais rigor —como nos casos de prisões preventivas por conta do “clamor público” do processo.
Mais que isso. Tais casos são inevitavelmente influenciados pelo “julgamento público” da sociedade, a partir das versões trazidas nos principais órgãos de comunicação, nem sempre precisas ou verídicas e nunca formuladas consoante técnicas adequadas de contraditório, defesa etc. A provação do acusado pela exposição pública muitas vezes supera o da condenação, funcionando tal situação quase como uma ordália contemporânea.
Niklas Luhmann, em sua teoria dos sistemas, identifica uma pluralidade de subsistemas comunicativos no interior do grande sistema social, cada qual operando por uma racionalidade binária própria e autônoma. Subsistemas fechados sintaticamente, o que lhes prove autonomia, mas abertos semântica e pragmaticamente, o faz surgir a ocorrência de uma racionalidade transversal, no sentido de Wolfgang Welsh, pela influência de sentido inter-sistêmica. Luhmann trata esta conexão semântica concentrada e duradoura entre subsistemas pelo conceito de acoplamento estrutural.
O Direito é um desses subsistemas. A Comunicação Social e midiática também o são. O problema ocorre quando as relações inter-sistêmicas entre Direito e Comunicação Social se dão de forma a que, no âmbito dos tribunais e dos órgãos de investigação, a racionalidade própria do Direito, do lícito-ilícito, é substituída pela racionalidade própria da mídia e da Comunicação Social.
Luhmann chama de “corrupção sistêmica” essas situações em que a racionalidade de um subsistema social é substituída indevidamente pela de outro. As “corrupções sistêmicas”, ou corrupções contingentes que ocorrem em casos específicos, conflitam com os valores do Estado Democrático de Direito, numa sociedade complexa e plural como a contemporânea. Se a racionalidade própria do Direito é suprimida por outra, o Estado de Direito, em sua dimensão de concretização, vai sucumbindo com ela.
A luta corajosa dos agentes públicos e profissionais da advocacia privada envolvidos num processo de caráter midiático como este do casal Nardoni é trabalharem em comum, mesmo que isso se dê em lados diversos do processo, para que a racionalidade própria do Direito se imponha, em favor não apenas dos envolvidos no caso, mas de toda a sociedade, do regime democrático e do Estado de Direito
18/03/2010
http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas_ver.php?idConteudo=63649