Levada ao extremo, a regra de ouro do jornalismo — ouvir sempre o outro lado — está criando situações contraditórias como a da procuradora aposentada que torturou uma menina de 2 anos e passou a usar a imprensa para inverter os papéis e assumir a condição de vítima.
Antes disso, porém, vale a pena falar de outro item do nosso código de ética que precisa ser flexibilizado: o uso obrigatório do adjetivo "suposto" antes do nome de um acusado ainda não condenado definitivamente pela Justiça. Por exemplo, há dez anos, desde que o jornalista Pimenta Neves confessou o assassinato da namorada, somos levados a tratá-lo como "suposto assassino", até que seja condenado em última instância, o que, pelo jeito, pode não ocorrer neste século.
Por sua vez, o deputado Paulo Maluf está sendo procurado pela polícia de 181 países, mas aqui ele cometeu "supostos crimes". Até traficantes conhecidos e reconhecidos, como Fernandinho Beira-Mar antes de ser preso em penitenciária de segurança máxima, já ostentaram o tratamento de "supostos".
Tudo bem que não se condene a priori, mas absolver pode? Afinal, é o que se faz em nome da isenção ao se dar destaque ao réu não só para se defender, mas para culpar a verdadeira vítima. Será essa a função da imprensa? Como nem sempre o repórter replica e faz as vezes de promotor, preferindo a atitude passiva, essas entrevistas se tornam uma espécie de júri em que apenas a defesa se manifesta, já que só o réu fala. Acabam virando shows de caradurismo e hipocrisia.
Foi o que aconteceu agora. Depois de ler, ouvir e ver as recentes falas da tal ex-procuradora, o leitor ou espectador pode chegar à conclusão de que ela, coitada, foi "vítima de uma armação" e que a menina rebelde, mal-educada, até merecia o justo castigo que lhe foi imposto para o seu próprio bem.
Diante das provas e evidências — gravações com sua voz xingando a menina de "vaquinha", "cachorra", "você não vale nada", depoimentos de ex-empregadas, fotos do rosto da menina com hematomas, laudo incriminador do Instituto Médico-Legal — ela simplesmente negou, desqualificando as acusações. E os laudos do Instituto Médico-Legal? "Não reconheço." E os olhos inchados e roxos? "Não sei quem fez e gostaria muito de saber" (mas não explicou por que então fugiu e só se apresentou quando cartazes com sua foto foram espalhados pela cidade).
Conhecedora das manhas e brechas da Justiça, da qual é egressa, a ex-procuradora indiciada tem até direito de tentar usar os jornalistas para impingir-lhes a palavra dela e do advogado contra o silêncio da inocente. Nós é que não podemos aceitar sermos manipulados a seu favor.
Texto publicado no Globo
Antes disso, porém, vale a pena falar de outro item do nosso código de ética que precisa ser flexibilizado: o uso obrigatório do adjetivo "suposto" antes do nome de um acusado ainda não condenado definitivamente pela Justiça. Por exemplo, há dez anos, desde que o jornalista Pimenta Neves confessou o assassinato da namorada, somos levados a tratá-lo como "suposto assassino", até que seja condenado em última instância, o que, pelo jeito, pode não ocorrer neste século.
Por sua vez, o deputado Paulo Maluf está sendo procurado pela polícia de 181 países, mas aqui ele cometeu "supostos crimes". Até traficantes conhecidos e reconhecidos, como Fernandinho Beira-Mar antes de ser preso em penitenciária de segurança máxima, já ostentaram o tratamento de "supostos".
Tudo bem que não se condene a priori, mas absolver pode? Afinal, é o que se faz em nome da isenção ao se dar destaque ao réu não só para se defender, mas para culpar a verdadeira vítima. Será essa a função da imprensa? Como nem sempre o repórter replica e faz as vezes de promotor, preferindo a atitude passiva, essas entrevistas se tornam uma espécie de júri em que apenas a defesa se manifesta, já que só o réu fala. Acabam virando shows de caradurismo e hipocrisia.
Foi o que aconteceu agora. Depois de ler, ouvir e ver as recentes falas da tal ex-procuradora, o leitor ou espectador pode chegar à conclusão de que ela, coitada, foi "vítima de uma armação" e que a menina rebelde, mal-educada, até merecia o justo castigo que lhe foi imposto para o seu próprio bem.
Diante das provas e evidências — gravações com sua voz xingando a menina de "vaquinha", "cachorra", "você não vale nada", depoimentos de ex-empregadas, fotos do rosto da menina com hematomas, laudo incriminador do Instituto Médico-Legal — ela simplesmente negou, desqualificando as acusações. E os laudos do Instituto Médico-Legal? "Não reconheço." E os olhos inchados e roxos? "Não sei quem fez e gostaria muito de saber" (mas não explicou por que então fugiu e só se apresentou quando cartazes com sua foto foram espalhados pela cidade).
Conhecedora das manhas e brechas da Justiça, da qual é egressa, a ex-procuradora indiciada tem até direito de tentar usar os jornalistas para impingir-lhes a palavra dela e do advogado contra o silêncio da inocente. Nós é que não podemos aceitar sermos manipulados a seu favor.
Texto publicado no Globo